Entrevista ao Jornal “Notícias de Viana”
ENTREVISTA CONCEDIDA AO JORNAL “NOTÍCIAS DE VIANA”, EM 2021, EVOCANDO CINQUENTA ANOS DE ACTIVIDADE NO CAMPO DA COMPOSIÇÃO MUSICAL
Foi dada por escrito, a partir das questões colocadas pelo Director do Jornal, Órgão oficial da Diocese de Viana do Castelo. Não foi então publicada devido a ter resultado num texto demasiado longo para as dimensões do referido semanário. Resolveu-se então aguardar pela oportunidade de uma publicação resumida na versão em papel e uma eventual publicação do texto integral on line, numa próxima oportunidade.
Pe. Jorge Barbosa
- 1. Comecemos, muito lá atrás, pelo menino natural de Castanheira (P. Coura). Qual seriam as primeiras memórias musicais que construiu? De que forma o que viveu na infância marcou o seu posterior trabalho musical?
- 2. O que estimulou e fomentou a sua relação com a música no seminário?
- 3. Durante a formação em Braga acompanhou a receção do Concílio Vaticano II. Como viveu e descreve esse momento? O que falta realizar?
- 4. Regressando a Viana foi ordenado por D. Júlio Tavares Rebimbas, naquela que era e continua a ser a “Diocese Menina”. Quais foram os sonhos dos primeiros tempos de ministério?
- 5. Manuel Faria, em Braga, e Domenico Bartolucci, em Roma, são duas das grandes figuras que marcaram o seu percurso. Quais foram os desafios e as inquietações que, quer um, quer outro, lhe deixaram e lançaram?
- 6. Como foram os primeiros tempos de dedicação à música no pós formação em Roma?
- 7. Quais são as temáticas musicais com as quais se volta sempre a reencontrar? Porquê?
- 8. O ensino da música foi um dos seus focos. O que diria que é comum a todos os bons músicos que ajudou a formar? O que faz com que alguém que nunca contactou com esta realidade, desperte um interesse capaz de o fazer compenetrar-se neste universo?
- 9. Na sua dedicação à música existiu um intenso trabalho de recolha e readaptação do património popular, não só em Portugal. Como caracteriza a paisagem que a música do Alto-Minho traça?
- 10. Hoje, como vive a sua entrega à música?
- 11. Uma curiosidade: o que o fascina tanto no Parsifal de Wagner?
- 12. Depois de 50 anos de dedicação à música, o que pensa que ficará?
1. Comecemos, muito lá atrás, pelo menino natural de Castanheira (P. Coura). Qual seriam as primeiras memórias musicais que construiu? De que forma o que viveu na infância marcou o seu posterior trabalho musical?
Nascido e criado num meio particularmente pobre de recursos, materiais e culturais, não poderia usufruir de uma grande influência ao nível musical a não ser das cantigas que escutava dos meus irmãos mais velhos e das raparigas casadoiras que, pela tarde, se faziam notar enquanto segavam a erva nos campos, dos altifalantes que ecoavam pela aldeia na época das festas de Verão, e de uma ou outra canção que escutava de minha mãe, como uma de Natal que ela um dia me ensinou e que, um tempo depois, escrevi para Coro: “Entrai pastorinhos”. O meu pai, dizem, era um exímio tangedor de concertina, mas nunca o ouvi tocar porque, depois de ter perdido quase toda a família o deixou de fazer. Junto com os meus irmãos gostava muito de cantar nos serões, o que alegrava particularmente o mau avô materno quando repetíamos as cantigas que se escutava na rádio. Um dia, ofereceu-me uma harmónica de boca, ou realejo, mas não foi com esse que aprendi a tocar… O meu pai falava de me oferecer uma guitarra portuguesa, mas isso nunca se concretizou. O primeiro instrumento que aprendi a tocar foram os quatro sinos do campanário da igreja paroquial, mal imaginando que, mais tarde, haveria de compor as músicas que ressoam hoje nos carrilhões da Sé de Braga ou na Universidade de Vigo. Especialmente marcante foi a experiência retida do ambiente musical de algumas festas litúrgicas quando, muito criança ainda, escapava do controlo da minha mãe ou da irmã mais velha, para me ir empoleirar nas escadas do púlpito a fim de ver melhor o organista, um pároco vizinho, manejando as teclas do velho harmónio, onde depois eu haveria de arranhar também os primeiros acordes ainda desafinados. Foi esta, sem dúvida, a génese da minha vocação musical. Durante a idade escolar, o meu pároco de então, ofereceu ao meu irmão António, um pouco mais velho que eu, um Manual de Solfejo, possivelmente do Seminário, e por ali, com ele, aprendi a decifrar as primeiras notas e pouco mais. Inequivocamente, a minha ida para o Seminário, um ano depois de concluída a escola primária, deveu-se à possibilidade que me era garantida de poder estudar música.
2. O que estimulou e fomentou a sua relação com a música no seminário?
Não admira, por isso, que a música tenha sido uma das minhas opções de estudo, embora não fosse a única, pois gostava de tudo e era bom aluno desde o início. Também por isso me poderia dedicar mais ainda à arte dos sons. Muito antes de terminar o primeiro ano escolar, já tinha devorado todos os exercícios do programa, constantes do manual Le Solfège des Écoles, utilizado no Seminário de Braga, pelo que comecei a estudar os do ano seguinte, ou seja, adentrando-me na tonalidade de Sol Maior. Desde os primeiros dias de Seminário fui também chamado a integrar o Coro dos Pequenos Cantores da Imaculada, coro do Seminário de N. S. da Conceição, por meio de uma selecção feita pelo P. Manuel de Faria Borda, que nos punha a cantar “O mar enrola na areia” por grupos e ia identificando as vozes. O canto coral foi sempre uma grande escola para mim, experiência que eu adorava, onde cantávamos tanto música popular como litúrgica, tendo estreado, creio eu, a Missa em honra de Santa Luzia do mesmo músico, e cantávamos com a Orquestra Sinfónica do Porto, o Stabat Mater de Armando Antonelli, na festa em honra de Nossa Senhora das Dores, na igreja dos Congregados. Como escrevia então o jornalzinho dos alunos, Voz de Esperança, eram “dias de louros” para aquele enorme grupo de crianças. O facto de ter boas notas e gostar de música, permitiu-me começar a estudar Piano, no ano seguinte, continuando o programa, já adiantado, de Solfejo e Teoria. O professor era então o P. Manuel Branco de Matos de quem nunca recebi um especial apoio; se nunca prejudicou o meu progresso, também nunca o estimulou.
Algo mudou na minha vida de estudante de música no Seminário Menor já no terceiro ano; mais voltado para a vertente da música litúrgica, preferi então estudar Harmónio, um dos erros que cometi na minha vida… o Professor, Cón. Manuel Rodrigues de Azevedo, ao ouvir-me pela primeira vez tocar um pequeno exercício do Método de Harmónio de Ettore Pozzoli, então em uso no Seminário, só me disse: “Tu vais longe, rapaz!…”, e nunca mais me chamou. Fiquei por minha conta e risco todo o ano. Quando, no final, o P. António de Oliveira Fernandes chamou um grupo dos eventualmente mais dotados para escolher os organistas para o ano seguinte, toquei uma peçazinha do mesmo manual, que ainda recordo, deu-me oito dias para estudar uma versão do Largo de Haendel, existente no mesmo livro, o que fiz com assinalável êxito… Passei a fazer parte do lote dos quatro organistas, e no ano seguinte, voltei a estudar Piano, uma vez que Harmónio já tocava na capela…
Continuava com o normal programa de Solfejo e Teoria, mas deu-se um caso inesperado. No quarto ano, o P. Manuel de Faria Borda, que seria naturalmente o nosso professor, bem como o temido professor de Piano, adoeceu e ficou, definitivamente impossibilitado de dar aulas. No Piano, fiquei, mais uma vez por conta própria; no Solfejo fizemos o seguinte: nas aulas, assumidas então pelo P. Oliveira Fernandes, ele apenas chamava e marcava os exercícios a estudar e eu, no salão de estudo, ensaiava os mesmos exercícios, preparando os meus colegas para serem avaliados nas aulas presenciais. Como, naturalmente, teria obrigação de saber cantar os “números de solfejo” de onde pontificava o célebre “Fá-Lá-Dó” (n. 314), dava-me ao luxo de me apresentar à lição cantando, à primeira vista qualquer um dos restantes exercícios… Comecei então a ganhar fama de “músico” com toda a carga de significado que o conceito implica, e que me marcou, entre os colegas, até ao dia de hoje. O mesmo P. Oliveira Fernandes, recentemente falecido, também prefeito do quarto ano, constituiu também uma espécie de grupos, ou equipas, que se dedicariam a abordar assuntos da diversas áreas culturais: naturalmente escolhi música, tendo então oportunidade de escutar, orientadas por ele, algumas obras do repertório clássico, tocadas no célebre gravador de bobinas que ele tinha, de que recordo a terrível experiência que me causou a primeira audição do “Dies irae” do Requiem de Verdi!… Era o ano lectivo de 1970-71. No final desse ano, querendo proporcionar-nos uma especial experiência musical, o mesmo prefeito / professor, convidou o Dr. Manuel Faria, que apenas conhecíamos de nome, por o vermos estampado em alguns livros e em títulos dos cânticos do Jubilate, que cantávamos na capela, e da partitura da Missa em honra de São Francisco de Assis, mesmo acabadinha de sair do prelo, embora ainda inacessível aos nossos dedos de principiantes. Tivemos então a audição, comentada pelo ilustre Mestre, da Sinfonia n. 40, em Sol menor, de Mozart. Fiquei literalmente fascinado, pela obra e pela simplicidade, competência e simpatia do comentador, ao ponto de ter feito a exclamação de que mais me arrependi em toda a minha vida: “Um dia ainda hei-de escrever uma Sinfonia!”. Primeiro porque, desde esse momento, fiquei carimbado para toda a vida com a alcunha de “Mozart”, pela qual muitos meus colegas ainda hoje me tratam… segundo, porque ainda não consegui cumprir esse objectivo, ainda que, honestamente, já tenha feito muito mais do alguma vez imaginei, mesmo sem compor uma sinfonia. Foi nesse ano de 1971 que, enquanto me dedicava a copiar para uma encadernação de cadernos de papel pautado, as músicas dos cânticos que íamos tocando nas celebrações da capela, ao lado de algumas pequenas peças que garbosamente executávamos no final das celebrações, fui fazendo, por imitação, as primeiras garatujas. Delas destaquei uma tão simples quanto ingénua “Missa em Honra da Santíssima Eucaristia”, um conjunto de quatro cânticos, como era então usual fazer-se, e que acabo de recuperar, apenas pelo valor afectivo. Por isso mesmo, poderei considerar esse ano de 1971 como o início da minha actividade de “compositor”, completam-se agora cinquenta anos. Esses trabalhos eram realizados no tempo de férias, como se pode ver pela respectiva datação, e muitas vezes, enquanto guardava o gado no Monte dos Penedos, perante um maravilhoso pôr-do-sol, espelhado, ao longe, no mar de Caminha.
No ano seguinte, 1971-72, rumava ao Seminário de Santiago, para frequentar o 5.º Ano, continuando os estudos normais de música, agora sobre orientação do P. José de Sousa Marques. Para além do programa habitual, onde me sentia perfeitamente à vontade, aureolado com a fama de “músico” e com a conhecida alcunha, acrescentei, sob orientação do mesmo professor, os primeiros esboços de Harmonia, aliados ao estudo do Piano, e mesmo do Órgão para o que aproveitei o restauro do Órgão de Joaquim Claro, existente na Igreja de São Paulo, no mesmo Seminário. Aí, recebia também preciosas indicações de alguns colegas mais velhos – nomeadamente o José Gaspar da Silva Vaz e o António Casado Neiva – acerca de programas, repertório e estudos do Piano. Uma colecção intitulada Les classiques fovoris du Piano era a nossa referência de repertório. Nesse tempo tive ainda a ajuda preciosa, incluindo monetária, do P. Sousa Marques que haveria de marcar definitivamente a minha vida: a possibilidade de frequentar as Semanas Gregorianas de Fátima, onde colhi a formação e granjeei a amizade e simpatia de colegas e professores, nomeadamente, José Joaquim Geada, Mário Brás, Ângelo Ferreira Pinto, José Augusto Alegria e sobretudo Júlia de Almendra e Jos Lennards a quem cheguei a substituir na direcção gregoriana e com quem mantive uma grande amizade e contacto até à sua morte. No ano de 1973-74, frequentando o 7.º ano, exerci funções de organista e sobretudo de “Regente” como constava no Calendário Programa. Ensaiei então as primeiras experiências de direcção de coro e assembleia. No ano de 1974-75, rumava ao Seminário Conciliar para os estudos de Filosofia, e era, finalmente, aluno em Canto Gregoriano, Piano e Harmonia, do P. Manuel Ferreira de Faria, para além da participação na Schola Cantorum do Seminário. Mesmo sem o dar a conhecer aos professores, fui sempre escrevinhando as minhas “composições” de onde destacaria duas missas, das quais uma a 2 vozes muitas vezes cantada pelas cantoras da minha terra, e o recém recuperado grande “Te Deum” para Coro de quatro vozes masculinas e Órgão, (datado de Julho de 1975), para além de outras obrinhas escritas nos anos anteriores. A minha produção musical continuou durante os seis anos do Curso Filosófico-Teológico, em que fui também responsável pela música no Seminário Conciliar, o que implicava um contacto muito frequente com o Dr. Manuel Faria; mas a minha aprendizagem com ele limitava-se aos diferentes “exercícios” que ele me propunha, mostrando-me depois, por vezes, a sua própria realização enquanto estudante. Eu não tinha a pretensão nem a coragem de lhe mostrar os meus trabalhinhos apesar de ele saber que os ia fazendo, e alguns até foram apresentados publicamente com grande agrado dele, como aconteceu com as Vésperas do Santíssimo Sacramento, escritas em 1976 para o Coro de São João do Souto, e mais tarde cantadas em muitos outros lugares, nomeadamente a Antífona “Ó Sagrado Banquete”. Já no último ano de trabalho com ele, 1980, mostrei-lhe a última obra que tinha escrito: a Missa IV para Coro e Orquestra de Câmara, concluída nas anteriores férias grandes, em Sayat, perto de Clermont-Ferrand, cujo Santo ele apreciaria num Encontro de Coros de Braga, em redução para Coro e Órgão, pelo Coro Paroquial de Maximinos que eu dirigi durante os anos de Teologia. Numa actividade que já transcendia as fronteiras do Seminário tive o grande apoio de outro professor, Vice-Reitor do Seminário Conciliar e amigo para sempre: o Dr. Jorge Peixoto Coutinho. Este foi também uma espécie de mentor de quem guardo muitas memórias e sobretudo o conselho que me deu um dia: “Procura ter uma visão global da cultura e estuda sempre a música no contexto das outras artes”; um lema de vida que explica muito daquilo que as pessoas conhecem sobre mim. Entretanto, no ano em que frequentava algumas das matérias musicais no Seminário Conciliar, concluía o Curso de Direcção Gregoriana, em Fátima, (1977). Fiz o meu exame perante os professores Jos Lennards com quem continuei a trabalhar e Júlia de Almendra, tendo tido a felicidade da presença do eminente Maestro Frederico de Freitas que me veio felicitar no final. Quando eu lhe disse que estudava em Braga com o seu grande amigo, o Padre Manuel Faria, ele reagiu desta forma: “Ó Júlia, olha este rapaz é aluno do Padre Faria de Braga, por isso não me admira!…” ao que ela respondeu meio zangada: “Mas o que ele sabe aprendeu-o aqui!…”. De facto, um ano antes, no currículo de Seminário, eu fizera também o respectivo exame de Canto Gregoriano com o Dr. Faria, tendo então ocorrido um episódio curioso que me trouxe porventura mais dissabores que proveito. A um determinado momento ele faz-me uma pergunta cujo teor já não recordo bem; perante a minha resposta, ele, admirado, retorquiu: “Não estarás enganado?”, ao que eu respondi: “Não, Senhor Doutor, é um facto que se entendia como o Senhor Doutor diz, mas os estudos mais recentes apontam para o que eu acabo de afirmar…”. Com o seu jeito habitual ripostou: “Vai-te embora!…”. Pouco tempo depois aparecia na pauta, a vermelho, provocação do Secretário, Padre Cachadinha, a nota de 20 valores. Quando alguém interpelou o Dr. Faria por me ter dado aquela nota que ele nunca dera a ninguém, respondeu: “Ele sabe mais do que eu!…” Fiquei com a fama, que me tem custado cara, de “saber mais do que o Doutor Faria”, mas o contexto e o significado, que tenho procurado explicar, é apenas este. Concluindo este tema, note-se que, na formação de Seminário, a música era sempre secundária, não se compreendendo que alguém descurasse os estudos das outras matérias para estudar música; eu estudava Piano e Órgão durante os tempos de recreio, enquanto os colegas jogavam futebol, até porque não podia colocar em causa a minha condição de “urso” do Curso 1967-80. Eu estava ali para estudar Teologia; família, professores e até os meus colegas não perdoariam outra opção. E agradeço-lhes por esse facto.
Quando acabei a formação de Seminário, em 1980, onde colhi o variado “estímulo” e influência de alguns dos mentores que aqui fui assinalando, para alem de outros do chamado “grupo da Revista” como José Fernandes da Silva, Joaquim dos Santos, Mendes de Carvalho, Manuel Brito da Silva, trazia debaixo do braço quatro Missas, das quais uma irremediavelmente perdida, vários Motetes, cânticos, arranjos corais de diversa ordem, música sacra e profana, muitos deles escritos para o Coro Paroquial de Maximinos, para o Coro de Paredes de Coura e outros. Entretanto, na minha actividade curricular de Teologia, tinha escrito um trabalho de dissertação sobre A Música no diálogo entre Deus e o Homem; projecto para uma Teologia da Música, para o qual tive o quase exclusivo contributo da biblioteca pessoal do Dr. Manuel Faria ao mesmo tempo que aproveitei algumas indicações suas acerca de um tema que desde então sempre me tem ocupado, até como compositor; a relação entre a Música e a Teologia, nomeadamente a questão dos “fundamentos da música na consciência humana”. Quando lhe mostrei o trabalho disse-me : “Isto é o que eu gostava de ter escrito”. Por outro lado, a relação específica entre a Música e a Liturgia foi ainda abordada num exame, original e personalizado, da cadeira de Liturgia, em que, sob proposta do professor, P. António da Costa Neiva, fui desafiado a escrever um texto sobre a relação entre a dinâmica da celebração litúrgica e a Forma Sonata.
A partir de então, mantive o contacto com o Dr. Manuel Faria, mas apenas colaborando como organista nos trabalhos do Grupo Coral de Azurém, Guimarães, que ele dirigia e a quem acompanhei precisamente na sua última aparição em público, no Calvário em Vila Praia de Âncora, a 10 de Junho de 1983, menos de um mês antes de ele falecer. Estive por alguns tempo ligado ainda a Braga para dirigir o conhecido Orfeão de Braga, recentemente recuperado muito por acção do meu Coro Paroquial de Maximinos, durante a doença do seu habitual director.
3. Durante a formação em Braga acompanhou a receção do Concílio Vaticano II. Como viveu e descreve esse momento? O que falta realizar?
Esta questão a que já tive oportunidade de responder por diversas vezes noutros contextos é complicada; nos primeiros anos de Seminário, de 1967 em diante, tivemos o contacto com aos primeiros ensaios de uma versão vernácula da liturgia, nomeadamente as respostas do povo, enquanto outros textos iam aparecendo em folhas soltas, muito antes do primeiro “esboço” de Missal, já que as leituras, de há tempos, eram feitas em vernáculo, mesmo com o resto dos textos em latim. Surgiu depois o subsídio, ainda em folhas policopiadas, da revista Celebração Litúrgica que nós ajudávamos a organizar. Do ponto de vista musical, cantavam-se os cânticos que havia, marcadamente devocionais, já que os adequados à liturgia em vernáculo eram ainda poucos e faziam parte dos pequenos cadernos policopiados que usávamos então, sobretudo ao Domingo. Entretanto, para gáudio de todos nós, ainda muito jovens, por volta de 1970, deu-se a invasão do repertório de sabor mais rítmico, quase “pop”, nomeadamente por acção de uma colectânea de cânticos do género, com uma grande componente de “espirituais negros” intitulada Ritmos Litúrgicos. E daí despontou o conflito, mais ou menos acentuado, entre os professores e cultores da música sacra de qualidade e o que nós mais gostávamos de tocar e cantar: surgia como reacção, a primeira série da Nova Revista de Música Sacra, dirigida por Manuel Faria, cujo repertório também se ia cantando pelo Seminário embora não tão assiduamente. Foram elaborados novos cadernos de cânticos, nos três Seminários, tendo eu colaborado, como copista, em dois deles, realizando mesmo a totalidade do respeitante ao Seminário Menor, para o que passei no Seminário grande parte das minhas férias grandes de 1971, creio eu, trabalho pelo qual recebi do Reitor, P. António da Silva Macedo, a enorme gratificação de 500$00 (quinhentos escudos, o equivalente hoje a dois euros e meio…) e um livro de leitura espiritual de Ignacio Larrañaga, Momentos, com uma dedicatória curiosa que recordo ainda: “para leres e meditares nos momentos calmos das férias e nos desânimos da vida”. Colaborei depois no caderno Cânticos de Vida, do Seminário de Santiago, mas foi então que se deu a reviravolta na minha sensibilidade musical, provocada pela participação nas Semanas Gregorianas. Ali, a partir de Agosto de 1973, descobri as delícias do Canto Gregoriano de que já falei; também ali, e no contexto desta pergunta, tomei conhecimento dos conflitos entre as duas grandes correntes de opinião acerca da música sacra e liturgia, decorrentes da aplicação da reforma conciliar: a mais progressista, “Universa laus”, e a mais conservadora, “Una voce”, tendo mesmo escutado algumas palestras inspiradas por esta última, e passando a receber o respectivo boletim informativo, em folhas policopiadas. Ao tempo, eu não tinha propriamente consciência do que tais doutrinas significavam (e já despontava, lá pela Suíça, o futuro movimento restauracionista liderado por Mons. Marcel Lefebvre), e nos eram trazidas por um simpático e já idoso casal francês de nome Huhard. No Seminário, haveria de encontrar também as duas correntes e partilhar o conflito entre elas: a orientação da formação litúrgica era claramente aderente à corrente mais progressista da Universa laus, com relevo para o omnipresente P. Joseph Gelineau, onde encontravam ainda espaço as músicas do movimento Gen e afins; na liturgia da comunidade e da Sé, as coisas orientavam-se mais em torno dos ideais de Una voce, nomeadamente pela importância do Canto Gregoriano e Polifonia, que cultivávamos assiduamente, e para o repertório representado pela Nova Revista de Música Sacra. Pessoalmente, tive então necessidade de procurar um equilíbrio – nem sempre fácil – entre as duas correntes pois, por um lado, era aluno da cadeira de Liturgia, e por outro era aluno de música, responsável pela música no Seminário Conciliar, muito próximo do Dr. Faria, apaixonado pelo Canto Gregoriano e Polifonia Sacra. E por pouco as coisas não correram mesmo mal. Idêntico problema se originava na minha situação de “fiel da balança” entre os colegas, mais próximos da corrente progressista e da música mais ligeira, e o Dr. Faria, claramente entrosado com o movimento mais conservador. Hoje até tem graça falar disto, mas então foi bem difícil, fez e faz-me sofrer bastante, sobretudo quando vejo agora certas pessoas apresentando-se como “aluno e discípulo de Manuel Faria” e que nos fizeram então a vida negra.
Relativamente ao que falta realizar do Concílio, penso que quase tudo, pois não foi verdadeiramente assimilado ainda. A maior parte das celebrações litúrgicas é entendida ainda numa perspectiva ante-conciliar, marcada pela predominância do devocionismo, onde os sacramentos são vistos como uma espécie de comprimidos administrados sem receita médica, onde a preocupação não é a cura, mas a manutenção… (Tenho que parar por aqui…). No que respeita à música e liturgia volta-se sempre ao mesmo, repetem-se os mesmos erros e ninguém se importa, e até nos mandam calar quando reparamos. Indigna-me ver os jovens de hoje a cantar as mesmas coisas que nós cantávamos há cinquenta anos, pensando que são modernas; naquele tempo eram modernas, já eram fracas como hoje, só que nós não tínhamos grande alternativa. Eles têm. Pensam que fazem um grande figura ao dar uns acordes e não reparam que a sua música é mais pobre que a de qualquer arranhador de cavaquinho; ainda há pouco estive numa celebração em que todos os cânticos começavam da mesma maneira, com os mesmos acordes, com a mesma fórmula rítmica. Quando as pessoas nem se dão conta disso, o que se pode fazer?
Mais ainda, a formação que se tem dado, em sucessivos Encontros Diocesanos ou Nacionais, é sempre uma formação de massas; não resulta em nada; pior, muitos dos que a frequentam, depois não têm qualquer intervenção na Liturgia paroquial, e em alguns sítios são mesmo proibidos de intervir. Dizem-me que é preciso formar pessoas; criei uma “Escola de Música Sacra” que deixou de ter alunos ao fim de três anos (nada que eu não tenha previsto), mas há um aluno que continua ainda hoje a trabalhar comigo e muito tem aprendido; nestas coisas é preciso querer aprender e ter um trabalho regular; quem me procura em casa tem a porta aberta. Prefiro assim. Os que pensam que já sabem alguma coisa e que não precisam de formação, que sejam felizes na sua ignorância, mas não pensem que vão continuar sempre a enganar os outros. É pena que nas paróquias haja maior exigência e melhores condições para um funcionário do Centro Paroquial do que para um organista ou até catequista. Quando comecei a trabalhar com o Coro da Sé, há uns anos, até as fotocópias e pastas foram pagas do meu bolso, ao mesmo tempo que se gastaram trezentos ou quatrocentos mil contos para construir um “barraco” que é usado meia dúzia de vezes por ano. Como é que se pode concretizar assim o Concílio?…
4. Regressando a Viana foi ordenado por D. Júlio Tavares Rebimbas, naquela que era e continua a ser a “Diocese Menina”. Quais foram os sonhos dos primeiros tempos de ministério?
Não se trata de um regresso. Natural de Paredes de Coura, pouco mais conhecia de Viana do Castelo do que as Festas d’Agonia. Com a criação da Diocese, andava eu no segundo ano de Teologia, os seminaristas de Viana passaram a participar nas celebrações diocesanas vianenses, ao passo que eu, como responsável da música no seminário e organista, tinha que participar nas da Sé de Braga, até à minha ordenação. Por isso mesmo passei à condição de estrangeiro nos dois lados: em Braga porque era efectivamente de Viana; em Viana porque continuava a trabalhar em Braga. Para desgosto do Dr. Faria, (e meu, tenho que reconhecer) após a ordenação vim efectivamente para Viana do Castelo onde procurei dar o meu melhor, apesar de a recepção não ter sido das melhores por diversos factores incluindo a minha condição de “estrangeirado”. Dizia-se antes de eu chegar: “Cuidado com ele que só vai ensaiar Canto Gregoriano!…”. Então a minha actividade na “Diocese Menina”, centrou-se mais em sectores que não tinham a ver com a música, salvo raras excepções: Dom Júlio Rebimbas, bispo que me ordenou e com quem mantive sempre uma relação muito cordial, perante os que lhe falavam da minha vocação musical dizia: “o Barbosa sabe música, mas também sabe muitas outras coisas e é nisso que eu preciso que ele trabalhe agora”. Era Professor de Religião e Moral na Escola do Magistério de Viana, e depois na Escola Normal de Educadores de Infância, era colaborador do Chanceler da Cúria, o então Padre José Augusto Pedreira, e fui depois pároco do Senhor do Socorro. Comecei a frequentar “clandestinamente” a Academia de Música de Viana, e fazia os exames como aluno externo no Conservatório do Porto. No mesmo dia em que Dom Júlio Rebimbas nos comunicava a sua nomeação como Bispo do Porto, a 18 de Fevereiro de 1982, mostrava-me o documento de nomeação como representante da Diocese de Viana no recém-criado Serviço Nacional de Música Sacra, que ia enviar a Mons. Aníbal Ramos, Secretário Nacional de Liturgia, serviço no qual tenho estado até hoje.
Pode-se, disto, concluir que os sonhos, podiam ser muitos, à partida, mas a realidade era bem diferente. Pouco antes da nossa ordenação presbiteral, Dom Júlio enviava a todos os padres da diocese uma “Carta aos que vão ser ordenados presbíteros” onde, entre outras coisas afirmava, “preciso de pastores e não de doutores”. Ao chegar, encontrei muita adversidade e desconfiança, entre outras coisas – que não quero contar aqui – a começar pelas verdadeira catástrofe que foi a música litúrgica cantada na cerimónia da minha ordenação, na Sé de Viana. Tinha a compensação dos ensaios do Orfeão de Braga; fui colaborando como podia, ajudando em ensaios, seleccionando os cânticos e escrevendo, à mão, os Guiões dos Encontros Diocesanos de Pastoral Litúrgica, dactilografava o já célebre Boletim de Informação Pastoral, enquanto escutava dos liturgistas da praça afirmações do género: “não te esqueças que a música é a serva da liturgia”, com o que se procurava minimizar a importância da música sacra, facto que motivou uma comunicação recente que fiz sobre o tema “Serva, mas não Cinderela”… Cheguei a um ponto de quase esgotamento, e até se espalhou em Braga o boato de que eu estava para abandonar tudo; este episódio motivou uma vinda de surpresa do Dr. Faria a Viana, passar um dia comigo, onde me contou tão surpreendente notícia que eu desmenti de imediato, comunicando-lhe que tinha acabando mesmo de aceitar a paróquia do Senhor do Socorro, inesperadamente vaga. Posso dizer que, os sonhos de então não se realizaram ainda, mas isto é mesmo assim: o Reino de Deus é sempre um projecto a realizar…
5. Manuel Faria, em Braga, e Domenico Bartolucci, em Roma, são duas das grandes figuras que marcaram o seu percurso. Quais foram os desafios e as inquietações que, quer um, quer outro, lhe deixaram e lançaram?
A minha relação com estes dois Mestres foi muito diferente. Manuel Faria foi uma “figura que marcou o meu percurso” ao lado de várias outras que fui referindo anteriormente. No entanto, dele colhi uma grande experiência e formação, muito para além da simples relação de professor-aluno, pois era um grande amigo e mesmo confidente. Um dia, muito mais tarde, o P. Fernandes da Silva disse-me isto: “Nem imaginas o quanto ele gostava de ti!…”. Tal como aconteceria depois com Domenico Bartolucci, aprendi mais com ele fora das aulas, no escritório dele em lições privadas, em conversas eventuais, nas caminhadas entre a Sé e o Seminário, ou de carro entre Braga e Guimarães. Resumidamente, recolho um depoimento já apresentado em várias entrevistas acerca de Manuel Faria e da sua relação comigo, agora vista da outra perspectiva: “Eram tempos particularmente difíceis de uma recusa radical e iconoclasta da música sacra, em muitos meios eclesiásticos mesmo na cidade de Braga, orientando as preferências, até a nível oficial, pela música mais ligeira, rítmica ou pop, como se quiser. Nas igrejas, e o Seminário não estava isento disso, cantava-se Bob Dylan, Joan Baez, Demis Roussos, Maria Ostis, e só contrariado se cantava uma música sacra, Salvava-se a Schola Cantorum, obrigatoriamente frequentado por todos os seminaristas, alguns deles com assinalável preparação, em que a polifonia renascentista gozava de particular acolhimento, juntamente com algum repertório executado com notório agrado de todos como o Requiem de Lorenzo Perosi ou a Missa de Santo Eduardo Rei de Licínio Refice, ao lado de algumas obras do próprio Dr. Faria, como a Missa “Cum Jubilo” e, mais tarde, a Missa Votiva, os Responsórios da Semana Santa, e outras, ao lado de uma grande Ave Maria de Palestrina. Enquanto aluno de Harmonia, mais do que Composição, quando eu me aventurava um pouco mais, ele procurava comparar as minhas coisas com as obras dos grandes autores – como a missa perdida que eu tentava escrever para coro, solistas e órgão que ele confrontou com a Missa Solemnis de Beethoven – assim, eu ia percebendo o quanto a música era exigente e desafiante e quão longe eu estava ainda da verdadeira arte de compor. Das muitas conversas que mantinha com ele, nas já referidas caminhadas pelas ruas de Braga, recordo um conselho: “Mozart passou a vida a copiar outros músicos, só que ele, ao copiar, melhorava… faz como ele e aprenderás”. Sabemos que Bach também aprendeu assim e, nos tempos em que não havia, como hoje, a possibilidade de fotocopiar partituras, muito menos descarregá-las da Net, copiar músicas, pela necessidade de adquirir repertório era também uma notável forma de aprendizagem. Normalmente ele apreciava o que eu escrevia, apontava defeitos, fazia correcções e confessava humildemente que eu teria de ir para outro lado estudar, pois havia coisas que ele não sabia bem como explicar-me. Só encontrei essas explicações, mais tarde, em Roma. Devo acrescentar que tinha liberdade total para ir ao escritório dele procurar partituras com que acompanhava audições pela rádio; ele não tinha discos. Por isso, fui um privilegiado com o acesso a partituras que só muito mais tarde tive condições de possuir. Enquanto organista acompanhador do Coro do Seminário e do Coral de Azurém, pude executar grandes obras suas como a Missa de Nossa Senhora do Sameiro, “Cum Jubilo” e “Votiva”, o Stabat Mater, onde ensaiava os primeiros passos da execução organística, incluindo o uso da pedaleira, bem como a Missa “Jubilei” de Domenico Bartolucci, entre cânticos e outras obras de menor exigência, No tempo em que não havia auto-estradas, a distância e o tempo das viagens eram compensados pela partilha da sua enorme experiência musical, e não só, os agradáveis jantares, onde eu bebia um copo e ele o resto da garrafa, e as conversas divertidas como eram sempre as que tinha com ele. Sendo ele natural de São Miguel de Seide, partilhava com Camilo Castelo Branco, como hoje partilha o espaço de memória, um humor brejeiro e por vezes mordaz, mas sempre muito educado. Um dia contou-me que a melhor referência ao carácter da sua música lhe fora feita pelo meu professor de Canto Gregoriano, o holandês Jos Lennards; segundo este, a música de Manuel Faria era uma música “máscula”. Imaginem o verdadeiro significado desta palavra na boca de Manuel Faria.
Já em Viana do Castelo, fui frequentando a Academia de Música, como referi, e depois o Conservatório de Música do Porto, em Piano e Composição, vinda entretanto a ensinar também as mesmas matérias, entre outras, na mesma Academia vianense. Um percalço, entre outros, provocado por um complot que me desaconselhou a submeter-me ao exame final do Curso Superior de Piano, no Conservatório do Porto, levou o bispo Dom Armindo, entretanto informado do acontecido por Mons. Reis Ribeiro, a chamar-me para me dizer: “Sei o que lhe aconteceu; essa safadeza não se faz a ninguém; o senhor vai já para Roma”.
E assim, quando menos esperava e no pior momento face à saúde do meu pai, fui mesmo. A preparação até então recebida e a experiência já acumulada foram essenciais para ingresso no Instituto; caso contrário não seria admitido; mais ainda fui mesmo dispensado de algumas cadeiras e foi-me me proposto ou permitido também acumular outras. Mais pormenores deixemos para outro momento. Ali conheci finalmente Domenico Bartolucci, mas devo dizer que, para além dele, recebi a influência e tive o “estímulo”, para usarmos a linguagem anterior, de personalidades como Bonifácio Baroffio, Director do Pontifício Instituto de Musica Sacra e professor de Canto Gregoriano, com quem ainda mantenho contacto, o organista Alberto Cerroni, um franciscano que era a alegria em pessoa, Ítalo Bianchi, professor de composição e uma personalidade tão humilde quanto competente, um verdadeiro professor a quem devo quase tudo o que aprendi em composição, inclusive a ensinar, alguém que, a partir de certo momento, quase me tratava como colega ao ponto de me dizer: “Tu farás música; eu faço para aqui umas coisitas…” Mas já ia na Terceira Sinfonia… (e eu ainda não comecei a primeira…) Tive Domenico Bartolucci como professor de cadeiras um tanto secundárias, onde até era bom aluno, mas foi nas sessões de Polifonia que lhe chamei a atenção ao ser convidado para dirigir o Coro dos Alunos, já no meu primeiro ano de frequência do Pontifício Instituto, quando essa possibilidade era reservada aos mais adiantados, nomeadamente do último ano. Efectivamente, quando era a minha vez de dirigir, brilhavam-lhe os olhos, pois sabia que iríamos cantar as obras mais difíceis e aliciantes, e que ele acompanhava ao piano, desde Motetes palestrinianos a cinco vozes, como o Alleluia “Tullerunt Domino” que me aventurei a executar em audição pública, para gaudio dele e de todos, professores e alunos, ou a Missa Papae Marcelli, cuja execução pública do “Kyrie” o meu professor Ítalo Bianchi considerou uma das melhores que ouvira em quarenta anos de estadia em Roma. Tenho várias histórias com ele, que não são para aqui, mas devo referir que aprendi muito nas agradáveis conversas que mantínhamos no autocarro que partilhávamos por vezes, fazendo depois um percurso de dez minutos a pé até ao Instituto; por vezes era eu que desviava propositadamente o meu itinerário normal para o poder acompanhar e continuar a conversa. Ali falávamos daquilo que ele não podia falar nas aulas, para toda a gente, nomeadamente comentando as obras dele que estavam a ser publicadas então, e cujas partituras eu ia adquirindo com as minhas parcas economias. Tínhamos alguns pontos de desacordo, pois ele era particularmente conservador, até na visão da Igreja; ficava sempre na dele, continuávamos amigos, partilhando uma mútua admiração. De Roma, ao nível de composição, ao fim de quatro anos, trazia na bagagem, para além dos trabalhos escolares entretanto deixados também em cópia no Instituto, a pedido dos professores, as Tredici Romanze ea Sonata em Fá Maior para Pianoe a Fantasia e Fuga sobre o Aleluia ”Pascha Nostrum” para Órgão, ao mesmo tempo que era publicado, em colaboração, na cidade de Vigo, o Cancioneiro Coral Galego para coros de crianças, um verdadeiro best seller há muito esgotado. Pouco depois era publicada em Lisboa, a instâncias do Dr. Joaquim de Oliveira Bragança, e precisamente na Revista do Instituto Gregoriano de Lisboa, a minha tese sobre A Música litúrgica em Braga nos sec. XII e XIII, cuja fama já tinha chegado à Alemanha…
6. Como foram os primeiros tempos de dedicação à música no pós formação em Roma?
Regressei de Roma, ao fim de quatro anos, portanto muito antes do que estava previsto porque não encontrava nada que justificasse a minha continuidade numa Escola que, mesmo na opinião dos meus professores, já nada tinha para me dar, e me esperava uma Diocese a contas com os colossais encargos económicos da construção do Seminário. Por isso, em encontro com Dom Armindo, no Colégio Português, em Maio de 1992, lhe disse que iria regressar definitivamente. Vinha com uma preparação notável em muitos aspectos, mesmo que não me tenha preocupado especialmente em obter diplomas ou títulos que adquiri, mas apenas competências, o que me voltou a trazer dissabores que não conto aqui. Não foi fácil, novamente, nem sequer possível, a minha reintegração na música ao nível da Diocese, apesar dos esforços de Dom Armindo que, entretanto decidiu que eu esperaria pela abertura do Seminário de Viana, o que veio a acontecer. A maior parte das minhas competências, sobretudo em Canto Gregoriano, musicologia e afins, não tinha qualquer aplicação no nosso meio e muito menos na Diocese. Com conhecimento e autorização por escrito do bispo Dom Armindo, fui ensinar para a Escola Superior de Educação de onde me vieram procurar no dia seguinte à chegada de Roma, leccionando aí os chamados “cadeirões” do Curso de Professores de Educação Musical. Dediquei-me a alguma actividade de concertista de Órgão, tendo dado mais de uma centena de recitais por várias regiões do país e Galiza. Nesta região do norte de Espanha, onde já era, de há muito, mais conhecido e apreciado do que por aqui, trabalhei na formação de directores de coro, escrevi muitas músicas a partir do folclore galego, que organizei em três colectâneas de Canto a Galícia, concorri a alguns concursos de composição coral, somando vários prémios e uns milhares de pesetas. Algo de paralelo acontecia com a música portuguesa, com três colectâneas também, mas a minha actividade composicional era particularmente reduzida, quer pela quantidade de outras ocupações quer porque estava um pouco saturado depois da esgotante experiência romana. Por cá, os concursos a que concorri eram, estranhamente, declarados vazios de prémios; é que isto de ser padre tem os seus inconvenientes em certos mundos e também nisso sou um feliz herdeiro dos meus mestres. As datações dos trabalhos ajudarão um pouco a compreender o percurso um tanto irregular, mas pode-se dizer que me centrava particularmente na composição para Coro, com especial relevo para arranjos e harmonizações de música popular. A minha produção em matéria de música sacra era praticamente nula pois – vá-se lá saber porquê – não era solicitada, exceptuando a Nova Revista de Música Sacra para a qual praticamente só não escrevi mais música porque não partilhava a sua linha editorial. Fui solicitado com bastante regularidade para palestras nos Encontros Diocesanos de Pastoral Litúrgica, embora nunca para os Encontros Nacionais. Mesmo assim, tive uma intervenção considerável no âmbito do Serviço Nacional de Música Sacra. Entretanto, a minha produção musical de âmbito nacional acabou por se desenvolver sobretudo a partir de uma proposta cuja execução veio quase a tornar-se monumental, com o tempo: a produção da série “In Sono Tubae”, constituída por cânticos litúrgicos instrumentados para Banda e Coro, alguns deles publicados em partitura pelo Secretariado Nacional e praticamente todos divulgados e disponibilizados através da Revista Pastoral Litúrgica do Secretariado Nacional. Trata-se de uma obra que atingiu sete volumes de vinte e cinco cânticos cada, totalizando uns milhares de páginas de partitura hoje disponíveis em “pdf”.
Sem entrar em pormenores, a minha acção de compositor incrementou-se sobretudo nos anos mais recentes em que o tempo disponível passou a permitir um trabalho mais regular. De facto, após a vinda de Roma, na Diocese, fiz de quase tudo menos música; Defensor do Vínculo do Tribunal Eclesiástico durante vinte anos, outros tantos formador de Catequistas, Professor de Teologia, Assistente Regional e Formador Nacional dos Escuteiros durante dez anos numa dedicação quase exclusiva, e por fim o Instituto Católico. Todo um trabalho de bastidores em iniciativas como Sínodo Diocesano, Comemorações do Quinto Centenário e Processo de Canonização de Frei Bartolomeu dos Mártires, Comemorações dos 40 Anos da Diocese, entre outras. Mais afastado, tenho-me dedicado ultimamente à composição de música sacra, procurando proporcionar, sobretudo a coros com alguma qualidade e aos organistas competentes que, felizmente, vai havendo em quantidade considerável, um repertório adequado e motivador que se concretizou na composição de várias obras com base no Próprio da Missa (Entrada, Salmo Responsorial, Alleluia e Comunhão). Estas Missas, já em número de nove, para as quais tive que escrever também os textos, são compostas a partir das melodias gregorianas próprias do Gradual Romano, sendo a mais recente de Março de 2021, a Missa em honra de São José, escrita ainda com base no texto da Carta Apostólica “Patris corde” do Papa Francisco. Entretanto, com o Ordinário da Missa (Kyrie, Glória, Credo, Sanctus e Agnus Dei) em português e em Latim, escrevi a Missa “Veni Creator” e a Missa Votiva para Coro e Orquestra, a Missa “Pueri Hebraeorum” Coro de Crianças e Órgão, todas a partir de temas gregorianos e outras duas para diferentes formações corais e órgão, algumas delas vindas já do tempo de Seminário e agora “revisitadas”. Estas revisitações, como costumo chamar-lhes, levaram-me ainda a recuperar e ampliar os efectivos em obras de autores conhecidos como Manuel Faria, António Ferreira dos Santos, Manuel de Faria Borda, Manuel Luís, Carlos Silva, José Fernandes da Silva, Joaquim dos Santos, Manuel Simões, José de Sousa Marques, António Cartageno, Júlio Vaz e Celestino Borges de Sousa, entre outros, reescrevendo obras destes para uma formação de Coro de vozes mistas e Órgão, alargando as proporções dos originais para uma dimensão quase concertante. Neste trabalho poderia relevar a reconstrução da Missa “Cum jubilo” de Manuel Faria, do original de vozes masculinas para Coro de cinco vozes mistas, e a orquestração e ampliação do efectivo da Missa em honra de Nossa Senhora do Sameiro do mesmo compositor e meu antigo professor para Soprano e Tenor solistas, Coro a 4 vozes mistas, Orquestra e Órgão. Posso dizer que, os confinamentos acabaram por ser, para a minha produção musical, uma verdadeira bênção, permitindo não só a recuperação de trabalhos anteriores e um pouco abandonados, como a concretização de muitos outros novos.
7. Quais são as temáticas musicais com as quais se volta sempre a reencontrar? Porquê?
Como se pôde ir deduzindo das respostas anteriores, podemos estabelecer, grosso modo, diferentes fases: em primeiro lugar uma preponderância da música profana para coro, em função da minha actividade de professor, director de coro, e da especial relação com a Galiza, iniciada em 1984, num Concerto de homenagem a Manuel Faria, no primeiro aniversário da sua morte. Mesmo ao nível instrumental, nomeadamente na música para Órgão, é essa vertente mais profana que está presente, sobretudo por meio da transcrição de obras clássicas, com relevo para os Concertos, ou mais modernas como a versão que fiz da Bohemian Raphsody do grupo rock “The Queen”, algo certamente inimaginável na mente de muitos daqueles que me conhecem ou, a mais recente, Fantasia Cromática e Fuga Chaconne de J. S. Bach. Numa segunda fase, que preencheria a primeira década e meia do séc. XXI, poderíamos apresentar os trabalhos de instrumentação para Banda e Coro, não apenas a já referida série “In Sono Tubae” (1996-2019), mas muitas outras obras, nomeadamente trinta Hinos aos Santos e não só, para Coro e Banda Grande, e os Cinquenta Salmos Responsoriais de Manuel Luís para Coro a quatro vozes e Banda, ao lado de transcrições de clássicos como a Missa em honra de São João de Deus de Joseph Haydn, muitas vezes executada pelo Coro e instrumentistas da Escola Superior de Educação, os verdadeiros inspiradores desta série de obras. Finalmente uma terceira fase que centraria no período que vem de 2016 em diante, centrada na composição sacra para Coro e Órgão de que falei antes, composições actuais ou recuperação de músicas de tempos anteriores, indo mesmo ao tempo de Seminário Menor, a que acrescentaria um número considerável de arranjos de cânticos de diversos autores, muitas vezes resultantes de pedidos de todo o lado. A produção original desta fase está especialmente ligada à influência do Canto Gregoriano que é verdadeiramente o inspirador e fornecedor do material para a minha música sacra. Neste período se situa ainda a produção já considerável de trabalhos para Coro e Orquestra, de câmara ou sinfónica, sendo os de maiores proporções a grande a Missa “Veni Creator” para quatro Solistas, Coro, Orquestra e Órgão, a Missa Votiva para Coro de Crianças, Coro misto, Orquestra e Órgão, o Te Deum de António Ferreira dos Santos, em versão para Coro e Orquestra e a Missa em honra de Nossa Senhora do Sameiro de Manuel Faria, para Soprano e Tenor Solistas, Coro misto, Orquestra e Órgão.
8. O ensino da música foi um dos seus focos. O que diria que é comum a todos os bons músicos que ajudou a formar? O que faz com que alguém que nunca contactou com esta realidade, desperte um interesse capaz de o fazer compenetrar-se neste universo?
Este é um tema particularmente caro. Não tenho segredos para os meus alunos que queiram aprender, seja na vertente pianística, seja organística ou mesmo da composição em que tenho realizado algum trabalho também, para além do apoio à realização de Teses de Mestrado e Doutoramento de alunos de diversas Universidades do País. Em vários momentos tive alunos particularmente dotados, nomeadamente na Escola Superior de Educação onde penso ter dado perspectivas de evolução àqueles que verdadeiramente se superaram e até me superaram. Tive muito gosto em dar vários “20” a um deles. Mas creio que o que mais se releva da minha actividade de professor é a alegria de fazer música, de a praticar, de transmitir uma forma de vida, seja no ensino, seja em ambiente de concerto, seja despertando-os até para o fascínio pela música sacra, onde muitos alunos meus acabaram também por vir a colaborar. O que melhor define a minha actividade no campo da docência é ter ouvido e continuar a ouvir de alguns alunos: “Nunca imaginei vir a fazer isto!” Procuro despertar neles a vontade de saber mais, de conhecer os grandes autores clássicos e assumi-los como referência, estimular o sentido crítico perante o repertório existente, seja de quem for, fiel que me mantenho a um princípio que herdei do meu professor de composição, em Roma, Italo Bianchi: “Nunca te curves perante ninguém a não ser Deus. Só Ele é um compositor perfeito”. Eu creio que isto desagrada a muto boa gente, sobretudo aquela que muito me ajuda a ensinar aos meus alunos “como não se faz música”. Gosto de trabalhar com eles em grupo, ajudando a interrogarem-se e a se motivarem uns aos outros, fazendo-os participar de um projecto que é comum. Aí aprendem comigo algo que é fundamental: nunca deixar ninguém sem resposta a uma questão nem criticar ou apontar um erro para o qual não tenha ou não possa apresentar uma solução.
Quanto à segunda questão creio que é mais difícil de me exprimir, mas fundamentalmente resume-se a revelar aos outros o prazer em escutar, ler ou executar boa música – e hoje há tantas possibilidades! – despertando-os para aspectos não reconhecíveis imediatamente; uma disponibilidade para revelar os segredos da técnica musical de modo a fazer que pareça fácil aquilo que por vezes não o é, ou então mostrar que é mesmo fácil o que parece difícil. Dar-lhes uma perspectiva globalizando da cultura musical na sua relação com a História, com as outras artes, nomeadamente a Poesia e a Arquitectura, ou então com a Teologia e, naturalmente, com a Liturgia; depois, nunca aceito que alguém diga que não gosta desta ou daquela música sem a conhecer; pode-se gostar ou não gostar, mas não se pode ignorar. Uma pequena história pode explicar tudo isto: Há tempos fui entrevistado por uma rádio local acerca de um concerto que iria dar nessa mesma tarde; no final do colóquio, a jovem entrevistadora fez-me uma pergunta: “Você gosta mesmo do que faz, não?” – “Mas porque diz isso” – “Porque se nota na forma como fala”. As experiências que tive enquanto ensaiador e condutor da assembleia nos Encontros Diocesanos de Pastoral Litúrgica também são ilustrativas disso mesmo: pôr mais de quinhentas pessoas a cantar com o rigor de um coro de dez ou vinte foi por vezes comovedor até para mim. Isto não se faz apenas marcando o compasso; é preciso colocarmo-nos no cérebro das pessoas, chegar-lhes ao coração. Outra forma de notar isso é ler o que os meus alunos e outras pessoas escrevem sobre as músicas que eu faço ou sobre a forma como eu toco; algo que vai muito para além das notas certas ou até superando os eventuais erros.
9. Na sua dedicação à música existiu um intenso trabalho de recolha e readaptação do património popular, não só em Portugal. Como caracteriza a paisagem que a música do Alto-Minho traça?
No que respeita à recolha, o trabalho não é assim tão intenso, mas fiz algum; comecei mesmo no Seminário quando colaborei com um verdadeiro apaixonada destas coisas da etnografia que era o António Maurício da Rocha Guerra, que foi ordenado depois e com quem continuei a colaborar até que faleceu prematuramente num trágico acidente de viação; era um trabalho sobre os Autos de Santo António e São João, de Subportela, e o Auto da Floripes, das Neves, e paralelamente o Auto dos Pares de França, onde me coube transcrever e fazer uma análise interpretativa das respectivas músicas. Mais recentemente colaborei e continuo a colaborar no mesmo sentido com o P. Eduardo Jorge Martins Parente, na transcrição e análise das polifonias minhotas do grupo de Cantadeiras de Crasto, Ponte da Barca. Sobre o assunto escrevi algo, em tempos, para a revista Galicia Cantat.
Como compositor, sobretudo na primeira fase do meu trabalho, anteriormente assinalada, tive oportunidade de fazer vários arranjos de música popular, partindo de recolhas feitas por notáveis e reconhecidos etnógrafos quer de Portugal quer da Galiza. Relativamente a Portugal, o trabalho de maior vulto, publicado recentemente pelo Instituto Histórico dos Açores, foi a Cantata Terceirense, para Coro a 4 vozes mistas sobre quatro temas do folclore da Ilha Terceira, escrita e interpretada pelo Coro da Academia de Música local, em 1996, em que os quatro temas são apresentados como uma espécie de quatro andamentos de uma sinfonia para coro; depois escrevi sobre temas de todo o país, mas com especial incidência no repertório minhoto como é natural. O mais recente desses trabalhos foi com temas recolhidos das cantadeiras de Crasto; imagine-se uma obra em que um Coro a 4 vozes mistas acompanha o canto original das mesmas cantadeiras, executando a Encomendação das Almas… mas foi o que fizemos em Ponte da Barca há pouco tempo. Quanto à Galiza não só fiz diversos trabalhos sobre temas do folclore galego, muito próximo do nosso folclore minhoto, mas também trabalhei temas de autores locais. Fiz ainda duas obras originais para Coro, ambas premiadas em Concurso, com poemas de Rosalia de Castro, uma figura sobre a qual também já escrevi para publicações galegas, e com cuja poesia compus também o, até agora único, ciclo de canções para Canto e Piano, Follas Rosalianas. Tenho ainda algumas experiências isoladas de utilização do repertório popular como inspiração da música litúrgica, como acontece por exemplo na Missa da Transfiguração, escrita para o Grupo Coral da Paróquia do Santíssimo São Salvador do Mundo da Ribeirinha, São Miguel, Açores.
A paisagem que a música do Alto-Minho traça é um pouco difícil de pintar com linhas fortes e facilmente compreensíveis, pois o autêntico folclore minhoto não passa pelas representações mais divulgadas comercialmente e mais reconhecidas entre nós. Como se sabe, o folclore minhoto é essencialmente polifónico, estruturado em três e quatro vozes femininas que se vão sobrepondo sucessivamente a partir da melodia mais grave, em intervalos de terceiras paralelas. Este modo de cantar retrata o ambiente de trabalho e o sentido comunitário da vida do campo, a solidariedade que passa pela partilha, tanto de meios como da força de pessoas e gados, no sentido de que todos possam conseguir o que um sozinho não consegue. É uma paisagem irregular, agreste por vezes, provocando ecos, reverberações que se misturam, prolongamentos de sonoridades até ao infinito, mas sempre suportadas por uma base sólida em que a voz do “baixo” garante a estabilidade dos diferentes planos de uma montanha que pode chegar aos cumes de um “guincho” ou mesmo à colocação de um nicho ou cruz do “fim” de modo a acrescentar um pouco às já elevadas alturas… Como recordo ainda da minha infância, por vezes alguém começava a cantar num campo e, inesperadamente, vinha a resposta de um outro por vezes já algo distante. Creio que a minha música reflecte um pouco isso pois ali as vozes cantam por grupos, resultantes da diferente relação e entrosamento das quatro partes da estrutura coral, um procedimento que aprendi particularmente da interpretação da polifonia palestriniana. O mesmo se diga um pouco da minha forma de orquestrar, também devedora à estrutura da composição organística. Se um dia alguém disser que eu, tal como Anton Bruckner, orquestro a partir da estrutura da música organística, é verdade.
10. Hoje, como vive a sua entrega à música?
Efectivamente, só agora me estou a dedicar mais própria e intensamente à música, apesar de manter a disponibilidade para o trabalho pastoral e paroquial, em muitos aspectos suspenso pela pandemia, para além da formação no Seminário, tanto dos mais pequenos como dos alunos do Ano Pastoral. A pandemia, se por um lado interrompeu, espero que não por muito tempo ainda, o trabalho de formação de organistas que fazia em minha casa, aos oito alunos que trabalhavam comigo, por outro lado permitiu uma dedicação à composição e ao estudo que, até então, eram praticamente impossíveis. Há certas obras, sobretudo de maior dimensão, que exigem uma dedicação e concentração que não se compadecem com contínuas interrupções e desconcentração. Por outro lado, o facto de hoje escrever ao computador faz com que o trabalho de escrita seja um pouco mais lento pois há passagens tecnicamente difíceis de verter para o computador e a ideia pode perder-se irremediavelmente; vamos arranjando truques e técnicas, mas as notas têm que entrar para lá… Mais ainda, hoje somos não apenas compositores mas também editores: deixamos uma obra prontinha a publicar e a executar, mas temos que fazer o trabalhos de compositor, copista, tipógrafo, revisor… Tudo isso leva tempo, mais tempo do que eventualmente se julga, por muito bem que dominemos um programa de escrita musical. Essa é uma das razões por que a almejada Sinfonia e outras obras do género ainda não apareceram e não sei se tal virá a acontecer. Estou certo de que muito do que escrevi mais recentemente, bem como a revisão de obras anteriores e sua versão final, não seriam uma realidade se não fosse o confinamento e a necessidade – e o drama, note-se bem – de procurarmos sentir-nos vivos e mantermos viva a esperança, sozinho, num apartamento, no quinto andar de um prédio. A título de curiosidade, a primeira das obras que revi e ampliei foi a, agora, intitulada Missa Votiva dedicada a todos os santos que se dedicaram ao cuidado de doentes em tempos de pandemia, trabalho realizado em Março de 2020. São muitos santos, graças a Deus, dá um bocadinho para cada um, e creio que me escutaram. Mesmo que não pense voltar à actividade de Concertos de Órgão, continuo a estudar repertório novo. Para mim e sobretudo para os meus alunos.
11. Uma curiosidade: o que o fascina tanto no Parsifal de Wagner?
Parsifal é uma figura lendária e literária, situada no contexto medieval da chamada “Demanda do Santo Graal”, própria da literatura de cavalaria, ou seja a procura do cálice com que teria sido celebrada a Última Ceia e a Primeira Eucaristia. Sobre esse tema, Richard Wagner compôs a sua última obra, um Drama Musical, como ele denominava as suas óperas, conseguindo realizar o que ele entendia como “obra de arte total” (Gesamtkunstwerke), ou seja, uma obra que englobasse todas as artes: arquitectura, pintura, escultura, literatura e música. Podemos dizer que engloba ainda a Teologia e a Liturgia, pois ali se retrata, de uma forma sublime, o momento da “consagração”: “Wein und Brot des letzten Mahles” (Vinho e Pão da Última Ceia). Creio que, nesta obra, Wagner consegue realizar aquela dimensão teológica da música enquanto expressividade, arrebatamento, magia, se quiserem, algo que nos arranca deste mundo e nos projecta para o sobrenatural, para o infinito, para Deus. Ouso dizer, e por isso tal obra me fascina, vejo mais liturgia, mais oração enquanto comunicação com o divino, nessa obra de Wagner do que na maior parte das “Missas” que a História da Música nos legou… É precisamente o contrário da maior parte da música que se faz por aí e a que chamam “litúrgica”. Tive oportunidade de fazer essa experiência há anos numa conferência que intitulei “Musica divina ou diabolus in musica?”.
12. Depois de 50 anos de dedicação à música, o que pensa que ficará?
Durante muito tempo eu dizia que não escreveria música para o futuro, nem estava particularmente motivado para as músicas do presente porque o que se gasta não está nos meus horizontes de qualidade e serviço à Liturgia que a música deve desempenhar. Por isso passei quase uma década sem escrever praticamente nada. Muita gente me pedia “cânticos fáceis para o povo”, quando o que pretendiam eram coisas que não dessem trabalho a ensaiar, de apreensão imediata, rondando a banalidade; ora isso são as características da música ligeira, rasca, muita da que se faz e publica como música litúrgica ou música sacra. Stravinsky dizia que António Vivaldi tinha escrito seiscentas vezes o mesmo concertos; na música sacra há algo que, como diz um amigo meu, faz lembrar aqueles concentrados de laranja que dão para quarenta copos, bastando adicionar água… Muitos dos que pretensamente escrevem para o povo não fazem mais do que escrever para um grupo coral, deixando ao povo a possibilidade de cantar com a primeira voz, utilizando tessituras tão elevadas que o povo não chega lá, ou movimentos tão rápidos que são impossíveis de acompanhar por uma assembleia. Por vezes, enquanto o coro se afoga em melodias francamente medíocres o povo escuta ou arranha uma ou outra nota mais acessível. A minha música escrita para a liturgia prevê a intervenção do Povo ou Assembleia, mas com secções próprias, exclusivas, adequadas, eventualmente dobradas pelo Coro, mas a este é dada sempre uma parte própria, mais exigente e mais motivante. O mesmo se diga do Órgão que não é acessível a todos, mas também nem em todos os lados há um bom Órgão e um bom organista; e nem sempre é dia solene… É para esses lugares e para esses momentos, para uma comunidade celebrante integral que eu escrevo. Do resto já temos que chegue.
Os músicos dos meios não eclesiásticos desafiam, e com razão, os compositores de Igreja a encontrarem um forma de compor com base na música sacra tradicional, nomeadamente o Canto Gregoriano, utilizando linguagens mais recentes; o pensamento da Igreja vai no mesmo sentido, mas acrescenta algo importante, “e que seja também acessível ao povo o que é para o povo e ao coro o que é do coro e, já agora, ao organista o que é do organista”. Não se diz que seja fácil nem que seja medíocre. Alguns compositores de fora, verdadeiramente competentes, procuram escrever o que chamam música sacra “moderna”, mas esta é completamente incompreensível para a maior parte dos executantes e muito mais para o povo; não é fiel nem ao texto nem à liturgia. A música que se afirma de litúrgica, presente nas publicações de referência, é pautada por uma “aurea mediocritas” que não convence os verdadeiros compositores e que acaba rapidamente por cansar; daí a procura constante de “cânticos novos” quando sabemos que a igreja cantou, sem se cansar, o mesmo repertório durante mais de um milénio.A música que eu escrevo não é conhecida nem divulgada pelos meios normais existentes porque não cabe aí, e eu também não quero que caiba. O nosso Bispo Dom Armindo a um grupo de senhoras que, à porta da Sé, lhe sugeriam descer, nas suas homilias, ao nível das pessoas, respondeu com o humor, por vezes mordaz, que o caracterizava: “Não, minhas senhoras, vocês é que têm que subir!…”. É para gente que esteja disposta a subir, que esteja disposta a trabalhar, que esteja disposta a elevar-se para elevar, que esteja disposta a servir a liturgia, o povo e a Deus e não os gostos pessoais ou de outros, que eu escrevo música. E os que fizeram já a experiência de a interpretar, perceberam-na muito bem e não se arrependeram. Há uma característica na minha música litúrgica que, não sendo propriamente acessível a todos, é única: a dimensão teológica como razão da própria estrutura, linguagem, desenvolvimento da ideia musical. Ao jeito do “leitmotiv wagneriano”, mais do que o texto, é por vezes a música que fala mais alto: os temas escolhidos, o seu encadeamento na estrutura e na relação directa com o texto; por vezes a música diz mais, esclarece, vai mais além do sentido imediato do texto que reveste. Esse aspecto, estudado por mim ao longo dos tempos e tentado por outros compositores, nomeadamente Olivier Messiaen, encontra-se particularmente na minha música como desafio aos mais entendidos ou mais interessados. Esta dimensão, que explico sumariamente em algumas introduções à respectivas obras, não é acessível a todos, mas está lá, faz parte da mensagem a transmitir. Também aqui se aplica a frase do Evangelho: “Quem tem ouvidos para ouvir, oiça…”
Para além do mais, creio que, na memória dos meus alunos e de muita gente, ficará a imagem de alguém que se dedicou com alegria e entusiasmo pela causa da música em diversos meios, qua nunca se deixou vencer nem dominar pela mediocridade, alguém inconformado com o status quo, alguém que sempre lutou pela verdade e qualidade da música, fosse ela ligeira, erudita ou litúrgica, mesmo com o risco de perder amizades, criar conflitos, e certamente comprometer uma aliciante carreira musical, académica ou mesmo eclesiástica… Alguém que procurou ser fiel aos seus antecessores e mestres, sempre grato para com os amigos, porém, mais amigo da verdade do que de ser simplesmente agradável. Se as coisas não estão bem, pelo menos não poderão dizer que foi por eu não avisar. E há uma coisa que me agrada ouvir das pessoas e que ficará: “Aquilo que se compromete a fazer, faz bem!”. Ficam conferências, artigos, muitos publicados aqui a além, em Jornais e Revistas, ficarão certamente as “memórias”, publicadas ou não, onde se contará muito mais do que se pode contar aqui.
Há música minha executada e apreciada por todo o lado, por vezes sem saberem que é minha, em Viana, em Braga, no Porto, em Coimbra, Lisboa, Açores e Madeira, Roma e até no Brasil de onde recebi pedidos. Creio que muito mais do que eu próprio tenha conhecimento. Alguma dela foi mesmo gravada e outra vai sendo; uma obrinha que escrevi no Ano Mariano, Três Cantigas de Santa Maria, sobre temas de Afonso X, profusamente cantada pelo país e gravada em Roma pelo Grupo Ançã-ble, tornou-se porventura a obra que me define para muita gente. Este mesmo grupo já executou e gravou vários trabalhos meus com relevo para os Cinco Motetes ao Santíssimo Sacramento, porventura uma das obras mais difíceis que escrevi e a eles dedicada. Há pouco tempo, alguém publicava no You Tube um cântico que eu escrevi para a NRMS n. 33-34, a pedido da direcção da mesma revista, porque se pretendia apresentar música de todos os compositores de cá, em honra de Nossa Senhora; foi ainda antes de eu ir para Roma. Um comentário, creio que de um brasileiro, dizia: “Mas quem é este J. Alves Barbosa que eu não conheço de lado nenhum?” Ao ler aquilo por acaso, respondi-lhe: “Pois agora ficas a conhecer…” E, creio bem que quando outros conhecerem o que eu fiz dirão: onde é que esteve este fulano até agora?”. Simplesmente “silenciado” como escreveu recentemente alguém a meu respeito. E, aqui também, o silêncio é de ouro…
Meadela 7 de Maio de 2021.